O setor de contabilidade no Brasil vive um momento singular de inflexão. De um lado, há uma base ampla e ainda altamente fragmentada de players locais; de outro, observa-se uma crescente pressão por digitalização, eficiência e escalabilidade. Esse cenário está pavimentando o caminho para um ciclo robusto de consolidação via fusões e aquisições (M&A), especialmente impulsionado por fundos de private equity, grupos estratégicos e plataformas de tecnologia.
Com base em dados recentes do relatório divulgado pela a Bhub (março de 2025) que mapeou o mercado da contabilidade no país e em comparativos com movimentos já consolidados no mercado norte-americano, este artigo explora as oportunidades e desafios para investidores que buscam exposição a esse setor nos próximos anos.
Oportunidades no mercado brasileiro
O Brasil conta com mais de 85 mil empresas contábeis, das quais cerca de 99% são de pequeno porte ou microempresas, caracterizadas por baixa escala, forte dependência de mão de obra humana e limitada capacidade tecnológica. Essa estrutura fragmentada representa uma oportunidade clássica de arbitragem de eficiência via consolidação.
Segundo o relatório da Bhub, a digitalização do setor ainda é incipiente, com menos de 30% dos escritórios utilizando plataformas integradas de gestão. A crescente demanda por soluções contábeis automatizadas, especialmente entre pequenas e médias empresas (PMEs), abre espaço para players que ofereçam serviços recorrentes com alto grau de padronização e potencial relevante de escalabilidade.
Há também uma tendência clara de surgimento de “contabilidades as a service” (CaaS), modelo que combina tecnologia e serviços sob demanda, com margens mais saudáveis e elevada previsibilidade de receita — características altamente atrativas para investidores de M&A.
Outros fatores favoráveis incluem:
- Crescimento consistente do número de MEIs e PMEs no Brasil;
- Contínua pressão regulatória que demanda conformidade fiscal constante;
- Redução de barreiras tecnológicas para digitalização do backoffice financeiro.
Panorama das operações no mercado norte-americano
O mercado norte-americano de contabilidade oferece uma referência avançada e altamente consolidada para investidores atentos às oportunidades no Brasil. Nos últimos anos, o setor vivenciou uma onda intensa de fusões e aquisições, com destaque para estratégias de “roll-up” adotadas por firmas e fundos visando ganho de escala, expansão geográfica e incremento de serviços com alto valor agregado.
Dados e Tendências Recentes:
- Entre 2018 e 2023, o número de transações envolvendo firmas contábeis nos EUA mais que dobrou, segundo dados da Accounting Today e da IPA (Inside Public Accounting).
- Mais de 300 transações foram reportadas apenas em 2023, com os principais compradores sendo grandes firmas regionais e grupos apoiados por private equity.
- Os múltiplos praticados variam significativamente com o porte, margem e base de clientes dos adquiridos: Firmas pequenas (até US$ 5M em receita): múltiplos entre 4x e 6x EBITDA e firmas médias e grandes (acima de US$ 10M): múltiplos entre 8x e 12x EBITDA, podendo superar 15x em casos com alto grau de receita recorrente e base SaaS.
Exemplos de destaque:
- A BDO USA adquiriu mais de 20 firmas regionais entre 2020 e 2023.
- A CLA (CliftonLarsonAllen) realizou mais de 50 aquisições nos últimos cinco anos.
- A EisnerAmper, após aporte de private equity, iniciou uma expansão focada em tecnologia e client advisory services.
Estratégias mais comuns
- Plataformas PE-backed: investem em firmas contábeis com receita recorrente para escalar via aquisição e centralização operacional.
- Integração digital: foco em ERPs cloud-native, CRMs padronizados e eficiência de backoffice.
- Expansão de serviços: consultoria tributária, wealth management e M&A advisory se tornam verticais relevantes após a consolidação.
Essas operações têm criado estruturas de valuation robustas, com expansão de margens EBITDA após integrações bem-sucedidas. O modelo americano serve como blueprint para o Brasil com ajustes à realidade local.
Desafios enfrentados por investidores no Brasil
Apesar do enorme potencial, o mercado brasileiro impõe desafios significativos que exigem sofisticação dos investidores.
- a) Fragmentação e Informalidade
Mais de 99% das firmas contábeis são pequenas, com baixa governança, modelos analógicos e forte dependência de relações pessoais dos sócios fundadores com clientes. Isso dificulta due diligence e eleva o risco de churn após a aquisição.
- b) Gap Tecnológico e Resistência Cultural
A baixa adoção de tecnologias integradas e a resistência de sócios-fundadores a mudanças comprometem a escalabilidade e aumentam o tempo de integração.
- c) Complexidade Fiscal e Regulatória
A legislação tributária brasileira é extremamente complexa e sujeita a mudanças constantes, exigindo equipes altamente capacitadas e sistemas flexíveis para adaptação contínua.
- d) Desafios Macroeconômicos
- Volatilidade cambial dificulta previsibilidade de retorno para investidores estrangeiros.
- Taxas de juros elevadas encarecem operações alavancadas e aumentam o custo de oportunidade.
- Incertezas sobre a reforma tributária impactam projeções operacionais e exigem cenários contingenciais.
- Acesso restrito a crédito para PMEs limita o crescimento orgânico e aumenta a dependência de capital externo para modernização.
Esses fatores tornam fundamental o uso de estratégias de aquisição estruturadas, com earn-outs, integração progressiva e retenção de lideranças-chave.
Perspectivas de curto e médio prazo
O ciclo de consolidação está apenas começando. Com base em benchmarks internacionais de mercados igualmente fragmentados, como os Estados Unidos e o Reino Unido, estima-se que nos próximos 3 a 5 anos, ao menos 5% das empresas contábeis brasileiras poderão ser adquiridas ou fundidas, com foco nos centros urbanos das regiões Sudeste e Sul.
A entrada de players de tecnologia e fintechs no setor deve acelerar a transição para o modelo CaaS (Contabilidade como Serviço) e aumentar a atratividade de empresas-alvo com estruturas replicáveis e receitas previsíveis.
Espera-se uma valorização crescente dos ativos para firmas que apresentem maior nível de governança, padronização operacional e integração digital. Grupos estratégicos e fundos com capacidade operacional devem liderar a primeira onda de aquisições, seguidos por investidores financeiros à medida que as teses de consolidação forem comprovadas.
Conclusão
O setor contábil brasileiro representa uma das maiores oportunidades de M&A do middle market nacional. Com um ecossistema ainda fragmentado, carente de tecnologia e em transformação estrutural, há espaço para criação de valor significativo via consolidação. A experiência americana mostra que a digitalização, a padronização e a escala são os motores da consolidação eficiente. O momento é agora para os investidores que desejam liderar essa jornada.